(Em homenagem a Mário-Henrique Leiria e Tossan)
Por
Meu caro Dr. Nicolau Santos
Espero que esta carta, o vá encontrar bem de saúde, que eu vou bem graças a Deus.
Serve, a mesma, para lhe pedir desculpa pelo artigo de hoje. Não estava com grande inspiração e decidi "chular" um bocadinho o talento de dois grandes Humoristas, com quem convivi, e que tenho divulgado imenso: Mário-Henrique Leiria e Tossan (António dos Santos).
Passei uma vez uma noitada em casa do Mário-Henrique Leiria, em Carcavelos. Fui levado pelo grande Pintor do Movimento Surrealista Cruzeiro Seixas. Houve copos toda a noite, entre mim e o outro Mário. Por acaso não era gin-tónico... Havia um cão chamado vodka... Mas o que nós bebemos foi uma bagaceira branca, com que fiquei cá com uma ressaca!... O Mário-Henrique, naquele "porreirismo" dele, deu-me um papel com um poema dedicado a Garcia Lorca.
Nunca foi publicado em livro. Penso que terá saído num artigo, por altura da morte dele. Quando fiz o espectáculo "Mário Gin Tónico", todo baseado em textos inéditos do autor dos "Contos do Gin-Tónico", publiquei-o no programa que está esgotadérrimo.
Eis pois, o meu interesse e o gosto em o divulgar aqui, neste espaço, para um maior número de leitores.
E como o Humor anda muito por baixo, entre nós, também lhe envio 3 poemas do Tossan (António dos Santos). Eu também publiquei dezenas de textos humorísticos dele no programa de outro espectáculo que fiz, chamado "Tótó", baseado, em grande parte, em textos inéditos dele. Os textos foram-me cedidos pela sua viúva, a Manuela!!! (um grande beijinho Manuela, mulher extraordinária!!!).
É um crime (crime mesmo!!!) não haver um editor interessado em editar estes dois grandes Humoristas!!!! Estou à disposição para ajudar. Para que as novas gerações vejam como isto, de Humoristas, tem andado mal ultimamente...
Pronto! Aqui vão 3 poeminhas dele, que revelam bem da sua graça e que são, agora, revelados ao grande público do seu jornal.
Desculpe, não me alargar mais na minha carta e, se achar que eu escrevi pouco esta semana, pode ralhar-me. Mas acho que estes 4 presentes valem a pena. São 4 obras-primas de Humor.
Mário Viegas
PEQUENA ELEGIA A FREDERICO GARCIA
(Para viola, pífaro e pandeireta)
a lua desenha o céu
feita de papel de prata
a lua acende a planície
feita de papel de prata
cá em baixo berram tiros
no cavalgar de espingardas
uniformes cor de chumbo
caras como caveiras
ai camponês camponês
que não sabes o que és
a lua ri lá no alto
feita de papel de prata
ai cigano traficante
vendes bandeiras e pano
vendes relógio e G3
e G3 avariada
ai cigano ai cigano
ai cigano português
ai camponês tu também
dessas planícies largas
a lua está a mirar-te
sempre em papel de prata
pede a G3 ao cigano
mesmo que seja de pano
e que esteja avariada
camponês ai camponês
a lua já te não mira
a planície é do sol
como um cavalo no mar
a planície que é tua
mais bonita que a lua
ai camponês camponês
que já não sabes o que és
a lua deixou a prata
de papel e fugiu
e os guardas republicanos
vão prá puta
que os pariu
todos
TAL E COISA...
Quando ela me apareceu
vinha tal qual
como prometeu
E na intimidade
da solidão
ficamos enraizados
a trocarmos amor
E tal e coisa...
E coisa e tal...
Mais prá esquerda
mais prá direita
e continuamos
entre as fendas do silêncio
e porque tira e porque deixa
e tal e coisa e coisa e tal
ela já não dizia coisa com coisa
e eu tal e qual tal e coisa
tal como ela e eu tal qual
Tossan
EU AMO, TU AMAS
Eu amo, tu amas,
verbo amar.
Eu gosto, tu não desgostas,
verbo não desgotar.
E como não desgostaram
casaram,
verbo encasalar.
Até que um dia
nasceu uma nascente de filhos
e nessa mesma noite
os filhos morreram
com falta de ar,
verbo acabar.
Pai e mãe ficaram todos de preto
verbo colonial.
Tossan
AMOR DESCALÇO
(Dedicado à Manuela)
Ela ia minada de beleza
E eu, pé-ante-pé, seguia-a
como um íman preso
à memória que fica.
No entanto,
a indecisão se foi evaporando
até acender o meu espanto.
E para não me ouvir os passos
descalcei-me
E, descalço, ia no encantado encalço
do seu encanto.
De repente ela parou.
Fiquei mudo de atitudes!!!
E antes que eu falasse,
disse-me: Cale-se!
E eu calcei-me...
Tossan
Crónica de Mário Viegas publicada no Diário Económico em 1995