sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Mário Viegas - A bem dizer

Entrevista de José Manuel da Nóbrega

Jornal Se7e 17.01.91


Aqui se abre com um aviso: este Mário Viegas que vem já a seguir propõe-se a algum escândalo com as declarações que fez ao jornalista. O actor, o grande actor que ele é, como facilmente se reconhece, apeteceu-lhe aqui esvaziar um pouco de um saco cheio de muita diatribe. Só que o faz num momento feliz da sua carreira, com uma companhia recentemente formada e que se propõe fazer regressar ao Chiado (está a fazê-lo neste momento) o saudável hábito do teatro para o público (com público, leia-se...), e um novo programa de televisão aos sábados, fim de tarde, Canal 1.
Se o quiserem perceber, verão que não é por mal (coisa que as gentes do teatro praticam, no entanto, melhor do que ninguém) que o faz, mas porque de repente se deu possuidor de uma consciência que se arroga (justificadamente) o direito de se constituir numa moral.
Dizia-se no seu tempo (que foi igualmente o meu, mas mais para o velho) que não havia «rapazes maus». Daqui resultou que maus são hoje, apenas, os paizinhos deles... A Mário Viegas não cabe, porém, a carapuça. Como se aprenderá, o actor é filho único de um honrado e indefectível farmacêutico escalabitano.

Foto Gonçalo Rosa da Silva, copiada do jornal Se7e.


– Mário Viegas, tu és um actor que ora apareces como produtor dos teus próprios espectáculos, ora integrado numa companhia dirigida por outro encenador; tanto apareces na rádio, como numa sessão de poesia, como autor e intérprete de um programa de televisão que é, de resto, o que vai acontecer já depois de amanhã, com a primeira emissão de «Palavras Vivas». Isso não é tudo uma grande correria?

– Eu penso que não é bem uma correria... Tenho é aparecido em produções várias, próprias ou não próprias, e ainda no cinema, nos discos...

– Claro, também aí, e destacadamente...

– Pois... Mas a verdade é que tudo isso não obedece a nenhuma ideia preconcebida daquilo que se designa como o objectivo de uma carreira... ou uma carreira objectiva (risos)... O facto é que tudo me tem acontecido por acaso e eu ajo quase por instinto.

– A Amália também já me disse o mesmo...

– Ah, sim? (risos). Bom o facto é que há sempre uma parte do cérebro que decide coisas como se tivesse personalidade própria (risos)... A gente pode de facto ser surpreendidos por decisões tomadas aparentemente sem a completa consciência delas, mas o facto é que o cérebro é nosso e somos nós que tomamos a decisão final, não é? (risos)

– Não te julgava tão produto das inconsciências (risos)...

– ...Das subconsciências, melhor dizendo (risos). Olha: sabes como é que conquistei este espaço do S. Luiz? Tinha uma vaga memória de que esta dita sala de teatro experimental existia, e em 24 horas propus-me ocupá-la com um programa de teatro que nem fazia a mínima ideia qual pudesse ser...

– Estás todo devotado a esta causa. Até à próxima ou não?

– Não, eu quero muito consolidar este projecto... As pessoas parecem atribuir-me alguma inconstância, muita dispersão, volubilidade...

– Não era isso que eu queria dizer...

– Eu sei...

– Deixa-me pôr a questão desta maneira: o que tu fazes nas tuas produções são coisas que um qualquer encenador não faria tu fazeres, se é que me faço entender...

– Fizeste. Eu sinto-me mais à vontade a trabalhar sozinho. Dou-me muito bem comigo mesmo, mas não sou narcisista. Comecei por fazer teatro escondido em minha casa...

– Os teus pais não queriam que fosses actor?

– Não, eles nunca me reprimiram. Mas esse era o meu grande segredo...

– Isso em Santarém, claro ,na casa paterna. Estavas votado a quê?

– A nada em especial... Estaria votado a Farmácia, que é um negócio de família...

– Drogas, portanto...

— ...Droga... E então a droga foi o teatro (risos)... Em Santarém, miúdo, passava horas a fio no meu quarto, a ler alto. Adquiri uma técnica de leitura de que tenho uma certa vaidade. Sei, de facto, ler muito bem... De tal modo que sou capaz de agarrar num texto e dar-lhe, à primeira, as inflexões certas. Isso já me permitiu, de resto, fazer algumas batotas (risos)... Posso perfeitamente chegar a uma emissão de teatro radiofónico com o meu papel completamente em branco e «acertar» em todas as «deixas» sem falhar uma inflexão.

– Mas esse tempo de Santarém era uma brincadeira de garoto...

– Não, não. Era um fito que eu tinha de ser actor de teatro como os que via no Dona Maria, com aqueles cenários, aquelas peças...

– Vinhas a Lisboa com frequência ver teatro?

– Vinha. Nas férias do Natal, do Ano Novo, da Páscoa o meu único desejo era que me trouxessem a Lisboa para ir ao teatro. E, a partir da adolescência, vinha para casa de uma tia e não perdia uma única peça...

– Lembras-te da primeira que viste?

– A mais importante de todas foi a que vi classificada para adultos já tinha um bom buço, mas que reforecei conscenciosamente com negro de rolha (risos)... Era «Meu Amor É Traiçoeiro»...

– Sim, lembro-me muito bem... A Laura Alves aparecia em combinação e o tema era «forte», como se dizia no tempo...

– Isso (risos)... Laura Alves e Artur Semedo. O balcão do Monumental custava 25 tostões... Comprei depois a «Crónica Feminina» onde se publicava a peça em fotonovela, o que me permitiu ficar a saber o texto inteiro de cor. Foi uma coisa extraordinária!

– Como é que deste o salto para profissional?

– Fui para a Faculdade de Letras, para o primeiro ano do curso superior de História, porque de qualquer modo não tinha coragem de confrontar os meus pais com a decisão de ser actor. Mas matriculei-me às escondidas no curso nocturno do professor Carlos de Sousa do Conservatório Nacional.

– Não parece ter sido coisa muito estimulante...

– Para te ser sincero o professor Carlos de Sousa era um actor muito antigo e muito engraçado... Eu não aprendi nada com ele, mas foi fascinante esse tempo. Este senhor Mário Neves, que desde o Bucha e Estica do Ritz Club tem andado connosco e está hoje na companhia, conheci-o numa fábrica onde fui com os alunos do Conservatório representar «Cavalgada nas Nuvens», de Carlos Selvagem, de que eu tenho uma extraordinária fotografia de cena, comigo no papel de frade (risos)...

– Imagino (risos)...

– Quem apresentou o recital foi o Mário Neves, desde sempre um amador teatral e também declamador entusiástico. Mas essa noite está muito presente na minha memória porque foi precisamente nessa fábrica, às portas de Benfica, que eu cometi a ousadia de dizer «Mataram a Tuna», do Manuel da Fonseca, extraprograma, uma coisa muitíssimo «avançada» para o contexto português de então.

– Começaste, então, assim...

– Foi. Eu não conhecia absolutamente ninguém no teatro. A única pessoa da família ligada de alguma maneira ao espectáculo era o meu tio Augusto Lopes, felizmente ainda vivo, e que está ligado à história do cinema português, porque foi ele que trouxe para Portugal, ou inventou, não sei bem, o famoso Foto-Sonoro. Foi da sua boca que ouvi pela primeira vez os nomes desta  e daquela glória do cinema português. De alguma maneira eu vivi sempre com um enorme respeito, elevado à condição do mito, por todos os actores deste país que nesses anos fizeram a glória doméstica do nosso teatro e do nosso cinema. Eu olho hoje para os meus colegas mais idosos...

– Isso é mesmo assim? Quer dizer, um certo ar atento, venerando e obrigado que às vezes se te surpreende quando falas com este ou aquele actor é completamente sincero? Não é fita?

— Acredita que te digo isto com toda a sinceridade: tenho 23 anos de profissão e quando olho para os meus colegas mais velhos tenho um profundíssimo respeito pela hierarquia que eles incarnam. Um respeito quase miilitar, se quiseres. Sou incapaz de chegar ao pé da Eunice ou da Carmen, que ainda por cima é uma actriz com quem estou a trabalhar agora, e começar a tratá-las tu-cá-tu-lá...

– Por essa ordem de ideias o respeito pelo Salvador  é  quase veneração...

– Ainda bem que falas nele porque ainda recentemente o incluí numa das gravações das «Palavras Vivas». De facto, olho para ele como para um monumento. Ele é um actor que aos 83  anos ainda tem alegria e força para subir a um palco e fazer três sessões de uma revista! Eu só posso ficar a tremer na sua frente quando penso nos milhares de espectáculos que fez, nos milhões de espectadores que o viram, e isso só me pode provocar um profundo e incontido respeito.

– Esses são os teus mitos vivos. Mas há outros, simbólicos, que chamas com alguma frequência ao teu universo de actor. Refiro-me aos padres, aos militares, figuras que pareces assumir de uma forma sempre, pelo menos, sarcástica. Tens alguma pedra no sapato?

– Bom, eu nunca estive perto de uma educação militar ou eclesiástica e muito menos de uma formação de qualquer desses tipos. Andei no liceu de Santarém, a minha família nunca me incitou à frequência das sacristias...

– São, de resto, velhos republicanos, do tempo em que isso envolvia algum agnosticismo...

– De facto, o meu avô foi um velho republicano que teve bastantes chatices em Santarém. O meu pai sempre foi um democrata, com um extraordinário sentido de humor que julgo qué lhe devo (risos). Mas a verdade é que tenho uma grande embirração por fardas da polícia, de militares e, por maioria de razões, pelas sotainas dos padrecas. Sempre tive uma costela anarcoterrorista em relação a estes três fardamentos. Embora sem uma razão fundamentada – de uma maneira geral (risos) –, o facto é que não consigo olhar para o mais pacífico – aparentemente (risos) –, dos polícias sem sentir uma forte aversão. 

Foto Gonçalo Rosa da Silva, copiada do jornal Se7e.

– Mas as sotainas, então?

– Todo o comportamento, a forma de falar, de estar, de representar... Sim, a extraordinária escola de arte de representar que a igreja proporciona nos seminários só tem paralelo com a hipocrisia de que aparentemente o teatro vive. Só que o teatro é uma arte, veste-se de fantasia, vive de invenções... Enquanto a igreja assume-se como representante única de uma verdade de que se desdiz a cada momento...

– Fizeste a tropa?

– Fiz, fiz a tropa e esse foi um tempo que eu gostaria de poder esquecer, tão grandes foram os traumas desses três anos e meio profundamente inúteis da minha vida. De Outubro de 71 ao 11 de Março de 75 eu fui um homem profundamente infeliz, coisa que nunca me acontecera  antes e, felizmente, não voltaria a acontecer depois. A tropa destruiu-me muito, física e psiquicamente, roubou-me todo esse tempo ao teatro e fez de mim o tontinho do batalhão, aquele miliciano típico dos quartéis que passa a vida enfrascado, muito engraçado mas que não  serve  para nada.

– Como é que escapaste à mobilização?

– De uma maneira muito simples. Eu fui logo escolhido em Mafra para a Acção Psicológica do Exército e lá acabei por fazer o curso que me destinaria inevitavelmente às Áfricas... Mas houve alguém no Estado-Maior que achou que, como suspeito político que eu era desde os 16 anos, o melhor era mandarem-me para os combustíveis, que foi onde passei o tempo todo, não sem que antes tivesse informado o comando que, se chegasse à mobilização desertaria, situação para a qual, de resto, tinha tudo preparado. A verdade é que eu praticamente sou cego de uma vista e enviar um militar para a guerra nessas condições é enviá-lo para a morte, coisa que não me apetecia nem um bocadinho (risos).

– Andaria por aí medo, também, ou não?

– Admito que sim. Não sei em que percentagem as minhas razões antifascistas se sobreporiam ao medo, mas a verdade é que a esta distância toda o mínimo que eu posso dizer é que a vida e a prática militares são uma inutilidade perfeita e para mim completamente insuportáveis.

– Façamos a agulha para coisas menos pesadas: depois de amanhã, 19, regressas à televisão com um novo programa, «Palavras Vivas», que  é  poesia, está-se a ver, mas como?

– São 13 programas de cerca de 35 minutos cada e, naturalmente, todos eles sobre a poesia de alguns poetas portugueses, todos mortos, que é para não terem oportunidade de me chatear (risos)...

— Isso quer dizer que a série anterior, «Palavras Ditas», de poetas vivos, te levantou problemas?

— Problemas não, chatices (risos)... Este tem efectivamente um esquema diferente do outro. Primeiro vai para o ar a horas e dias diferentes: este às seis e meia de sábado, o outro era às nove e meia de domingo, logo a seguir, salvo erro, ao «Viva o Gordo!», com esse actor engraçadíssimo que é o Jô Soares. O meu ar de então era relativamente insuportável, um pouco pomposo, decididamente algo enfatuado, o que contribuiu para que um espaço raro em televisão, a poesia, se tivesse transformado num programa polémico como foi o caso. Para estas «Palavras Vivas» deitei isso tudo para trás das costas e fiz um talk show — era fatal, não achas? (risos) —, informal, em que apresento os poetas mortos de que gosto e aos quais me sinto, por esta ou por aquela razão, ligado.

— E nem um vivo...

— ... Não me puxes pela língua... Nem um, nem um vivo. Temos excepcionalíssimos poetas mortos...

— ... E vivos...

— ... E vivos... Mas menos... Um dos programas, por exemplo, é dedicado ao Ruy Belo. Eu nunca conheci pessoalmente o Ruy Belo e mesmo a sua poesia só comecei a admirá-la tardiamente. Talvez por ser difícil de dizer e ter um ritmo complicado de apanhar. Decidi dedicar-lhe um dos programas da série porque essa tinha sido uma das lacunas da série  anterior, e depois porque o Ruy Belo fez o liceu em Santarém e os lugares da sua adolescência foram os lugares da minha adolescência: o cinema, o Jardim da República, os bailaricos, as feiras...

Foto copiada do jornal Se7e
— Como é  que te veio essa vontade de dizeres os poetas? Na tua carreira a condição de «diseur» tem de facto um grande peso?

— Pois bem. Eu fui na adolescência um desesperado leitor. De tudo, de coisas que nem sequer percebi... Devorei romances, ensaios, teatro, poesia. Mas fi-lo sempre em voz alta, que  é um exercício que eu recomendo a toda a gente, sobretudo se forem actores... Ainda hoje, não sendo, embora, o leitor «desesperado» que fui — como já não sou o cinéfilo «viciado» que não perdia uma «fita» —, eu leio diariamente, alto, durante 15 minutos.

— Poesia, prosa?...

— Qualquer coisa, o jornal inclusive. Ler alto, todos os dias, um jornal é das coisas mais surpreendentes que se podem fazer.. ;

— Não estás a brincar?

— Absolutamente. Ler alto é uma coisa que me distrai, que me liberta, que me conforta... Eu costumo fazê-lo imitando vários locutores, certas formas características de falar.

— Foi isso que te deu essa particularíssima forma de dizeres, de representares?

— Não tenhas dúvidas!

— Isso  é  curioso porque és tu finalmente, Mário Viegas, quem rompe um pouco essa fronteira que o João Villaret deixara estabelecida sobre o universo da declamação em Portugal. Há uns anos atrás comparava-se os «diseurs» consoante a sua maior ou menor proximidade à «técnica Villaret», um pouco como aconteceu com Pessoa e os poetas que estes anos todos andam a apanhar os papéis, quando muito, da heteronimidade, salvo as raríssimas excepções que reconhecemos... Bom, tu pareces arredar definitamente o estigma villaretiano e és definitivamente, diferente!

— Há seis anos atrás esse fantasma do João Villaret apareceu-me quando fazia as «Palavras Ditas» na televisão. É que as pessoas tinham, e julgo que continuarão a ter, uma memória muito presente do João Villaret que foi uma presença televisiva imperecível devido à sua enorme simplicidade. E manifestavam-me a sua opinião sobre uma certa, minha, postura villaretiana...

— Assumes então a herança do declamador?

— Eu sou muito aldrabão a falar. Como palavras, cometo erros de construção gramatical, tenho uma péssima dicção na linguagem do quotidiano...

— Estás a entrar comigo!...

— Não estou tal! Quantas vezes eu não entro num táxi e só à terceira ou quarta vez me consigo fazer entender pelo  chauffeur?... Por outro lado, não consigo mostrar naturalidade quando estou a ler alguma coisa. Quando utilizo o teleponto, como aconteceu no outro programa, não consigo esconder esse facto. É visível para toda a gente que estou a ler. Desta vez não utilizo nada disso e por tal sinal até meto uma data de vezes os pés pelas mãos... Mas acho que se ganhou em espontaneidade, e falar mal por falar mal na televisão, hoje já ninguém repara nisso (risos)...

— De qualquer modo o Villaret é para ti um caso arrumado...

— Espera pelo quarto programa, em que lhe presto homenagem ao dizer a «Tabacaria», do Alvaro de Campos... Julgo que me encontro hoje mais perto dele, das suas inflexões, das suas habilidades de respiração e outros tiques, do que quando comecei há 25 anos...

— De qualquer forma é um mercado, se me é permitida a expressão, em que estás praticamente sozinho.

— De facto foi na declamação que fiz uma carreira. Se alguma coisa consegui profissionalmente nestes anos todos, isso devo-o aos recitais de poesia, às centenas e centenas de autores que interpretei, aos milhares de poemas que disse, e em que, de facto, não tive concorrência. É como recitador, portanto, que hoje me sinto realizado.

— Não tinha a consciência dessa importância. Então a declamação é o quê na tua vida profissional?

— Preenche 90 por cento dela. E  isso  diz tudo sobre o que ela significa para mim. E aqui posso retomar a primeira pergunta que me fizeste e dizer o seguinte: é por isso que, não sendo um solitário, eu me sinto melhor autodirigido-me; funciono melhor a solo, ou, se quiseres, como centro de qualquer coisa, porque trago dessas experiências vividas em milhares de palcos — às vezes nem isso, estrados, praticáveis, ou chão simples... — onde digo poesia, a solidão do actor perante si mesmo, senhor do destino seu e doutros, quando tudo corre bem e é uma maravilha porque desceu o santo nessa noite...

— Isso não é fraca compensação para um actor como tu?

— Eu acho que a maior qualidade de alguém reside no reconhecimento das suas reais capacidades, que é uma outra maneira de dizer humildade. Não se trata, evidentemente, de falsa modéstia, mas o facto é que é bom saber, quando somos bons, aquilo em que somos melhores e fazer disso o principal objectivo das nossas vidas.

— Tens-te na conta, afinal, de melhor recitador que actor?

— Acho que atingi um ponto de maturidade nas duas carreiras. Sei agora perfeitamente em que funciono melhor. E não gosto de ser um actor de génio capaz de fazer todas as coisas bem, porque isso me parece o cúmulo do pretensiosismo e da falta de humildade. Sei ainda que sou um óptimo passador de emoções, capaz da contracena certa ou de provocar a situação necessária. Com  quem melhor funcionei em conjunto foi com a Manuela de Freitas, a  Maria  do Céu Guerra, o Santos Manuel, o João Perry, a Irene Cruz. Não quero ofender todos os outros com quem trabalhei, mas a verdade é que foi com estes que mais trabalhei.

— E agora, na «Divina Comédia», com o Luís Miguel Cintra?

— Nunca tinha trabalhado com o Luís Miguel e isto é diferente porque é cinema... No cinema ninguém contracena com ninguém... Contracena com os adesivos (risos)...

— As marcas de adesivo que indicam o suposto actor ou actriz a quem se dá a réplica, julgo indispensável esclarecer para quem não saiba como se fabrica a «realidade« de um diálogo em cinema...

— Exacto... O cinema é uma coisa que não dá muito para conversas... Mas no filme nós fazemos um par muito engraçado, comigo como o Anti-Cristo e ele como o Místico... Foi muito giro.

— Tu dás-te bem no cinema, não dás?

— Sem querer ofender os verdadeiros actores do nosso celulóide eu sinto-me ainda na infância da representação desta arte... Sem ironia, apenas fiz 14 filmes é talvez só agora eu comece a reconhecer-me apto para o trabalho no cinema. A conhecer alguns pequenos truques indispensáveis à representação para a câmara...

— A contenção, sobretudo...

— Será isso. Enquanto no teatro se trata de vencer o buraco escuro do proscénio, e isso leva talvez dez ou mais  anos da vida de um actor, em cinema é preciso conhecer o truque, o golpe baixo, o tique que fará de uma expressão, de um movimento, de uma frase, uma coisa para fixar a vida toda na memória de um cinéfilo, coisa que parece escapar à maioria dos nossos realizadores...

— Ah, mas isso é muito interessante. Queres dizer que os realizadores portugueses menosprezam o trabalho do actor?

— Não sei se menosprezam, nem sei se são todos os realizadores portugueses. O que sei é que para muitos realizadores portugueses o actor é uma peça secundária da sua concepção cinematográfica. Ora o que acontece é que o público volta agora a ir ao cinema para ver os actores que entram na  «fita»...

— Mas os realizadores certamente estarão atentos a esse problema...

— Olha que não parece... Ainda recentemente, na Gulbenkian, naquela coisa dos «Estados Gerais do Cinema» a organização se esqueceu pura e simplesmente de incluir uma secção destinada ao actor de cinema, ou ao actor no cinema...

— Os cineastas me desculparão eu meter aqui foice em seara alheia, mas o facto é que o realizador português  é  muito de concepção francesa, digo de uma concepção francesa do cinema, ainda muito «nouvelle vague», Alain Resnais ou Truffaut, em todo o caso muito «Cahiers du Cinéma». Já são menos — há um ou outro que «morre», mas ainda sobram alguns. Porém, isto para dizer que isso veio ao arrepio de uma certa degenerescência do «cinema de actor», português; foi talvez uma reacção necessária a um certo cabotinismo que ocupou o lugar dessa grande época de oiro dos Antónios Silvas, dos Vascos Santanas, das Beatrizes Costas...

— Ora bem... E quem é que se lembra dos realizadores desses filmes?

— E tu António Silva? Quer dizer, se algum realizador português te visse com outros olhos, poderia descobrir no Mário Viegas um novo António Silva?

— Acho que sim. Eu e outros colegas meus... Desculpa-me a vaidade, mas acho que sim, que poderia ter hoje no cinema português um lugar à imagem de um António Silva. Mas dada, talvez, a inveja que alguns realizadores têm do êxito dos actores no cinema, o mais normal é não chamarem quem lhes poderia servir melhor, mas também quem mais notoriedade conseguiria...

— Troca lá isso por miúdos...

— Quando o meu querido amigo José Fonseca e Costa me chamou para fazer o Kilas, a personagem de um gandulo, chulo e machão, não faltou quem o criticasse por isso. Mas a verdade é que com todos os desequilíbrios que a produção teve, os meus complexos e tudo o mais, acabei por criar uma personagem que é uma recriação perfeita de muitas dás figuras marginais de uma certa noite lisboeta que se mascara em partes iguais de violência e de ridículo.

— Foi um marco na tua carreira de actor, o Kilas?

— Foi um marco na minha vida de actor e foi também um enorme êxito. Mais do que isso, ficou como um marco na história do cinema português. Pois meu caro amigo, tirando os filmes do José Fonseca e Costa, que habitualmente tem contado comigo para os seus filmes, mais nenhum realizador português foi capaz de ir pedir ao actor que eu sou outros Kilas, ou outros Kilas de outros Kilas, se me faço entender. Nem essa excelente criação que foi a Pepsi Rita da Lia Gama lhe abriu qualquer outra porta depois dessa. Dir-se-ia até que as fechou (risos).

— Mas o Manoel de Oliveira ainda agora te chamou para a «Divina Comédia»...

— E estou-lhe gratíssimo por isso! Mas tirando ele e o Zé, ninguém parece encontrar-me qualquer mérito para contracenar com os adesivos nos seus filmes respectivos (risos)... Sobre o Kilas passaram entretanto dez  anos e eu pareço estar definitivamente ausente das dezenas de propostas das algumas dezenas de jovens cineastas portugueses de quem é sempre de esperar o cinema que finalmente nos lançará a todos nas rotas do cinema mundial...

— Há muito sarcasmo aí, Mário Viegas.

— Há sobretudo muita dor e amargura. Não serei talvez o actor carismático necessário para entrar nos seus filmes, mas o certo é que eu sou altamente dirigível e sinto-me uma matéria plástica moldável a qualquer situação.

— Tu falaste aí atrás de complexos, mas a verdade é que por te ouvir falar ninguém te leva preso... Isso de complexos é para ser tomado à letra?

— Sempre tive um complexo: ser feio!

— Bom, não serás uma beleza... Tens esses olhos grandes...

— Vês?... Toda a gente me dizia que eu era feio e mais isto e mais aquilo, encheram-me de problemas. E eu olhava e via tipos lindíssimos e cada vez me achava mais feio.

— Bom e agora?

— Agora não tenho nada. Acho-me bastante engraçado, enquanto olho para os tipos lindíssimos e os vejo completamente horríveis, grandes narizes, olhos enormes, uns monstros (risos).

Entrevista de José Manuel da Nóbrega
Jornal Se7e 17.01.91


terça-feira, 6 de novembro de 2012

DOIS GRANDES HUMORISTAS, À FALTA DE UM...

(Em homenagem a Mário-Henrique Leiria e Tossan)


Por
Mário Viegas
Mário-Henrique Leiria.
Foto encontrada na net




Meu caro Dr. Nicolau Santos
Espero que esta carta, o vá encontrar bem de saúde, que eu vou bem graças a Deus.
Serve, a mesma, para lhe pedir desculpa pelo artigo de hoje. Não estava com grande inspiração e decidi "chular" um bocadinho o talento de dois grandes Humoristas, com quem convivi, e que tenho divulgado imenso: Mário-Henrique Leiria e Tossan (António dos Santos).
Passei uma vez uma noitada em casa do Mário-Henrique Leiria, em Carcavelos.  Fui levado pelo grande Pintor do Movimento Surrealista Cruzeiro Seixas.  Houve copos toda a noite, entre mim e o outro Mário.  Por acaso não era gin-tónico...  Havia um cão chamado vodka...  Mas o que nós bebemos foi uma bagaceira branca, com que fiquei cá com uma ressaca!...  O Mário-Henrique, naquele "porreirismo" dele, deu-me um papel com um poema dedicado a Garcia Lorca.
Nunca foi publicado em livro.  Penso que terá saído num artigo, por altura da morte dele.  Quando fiz o espectáculo "Mário Gin Tónico", todo baseado em textos inéditos do autor dos "Contos do Gin-Tónico", publiquei-o no programa que está esgotadérrimo.
Eis pois, o meu interesse e o gosto em o divulgar aqui, neste espaço, para um maior número de leitores.
E como o Humor anda muito por baixo, entre nós, também lhe envio 3 poemas do Tossan (António dos Santos).  Eu também publiquei dezenas de textos humorísticos dele no programa de outro espectáculo que fiz, chamado "Tótó", baseado, em grande parte, em textos inéditos dele.  Os textos foram-me cedidos pela sua viúva, a Manuela!!! (um grande beijinho Manuela, mulher extraordinária!!!).
É um crime (crime mesmo!!!) não haver um editor interessado em editar estes dois grandes Humoristas!!!!  Estou à disposição para ajudar.  Para que as novas gerações vejam como isto, de Humoristas, tem andado mal ultimamente...
Pronto!  Aqui vão 3 poeminhas dele, que revelam bem da sua graça e que são, agora, revelados ao grande público do seu jornal.
Desculpe, não me alargar mais na minha carta e, se achar que eu escrevi pouco esta semana, pode ralhar-me.  Mas acho que estes 4 presentes valem a pena.  São 4 obras-primas de Humor.

Mário Viegas


PEQUENA ELEGIA A FREDERICO GARCIA
(Para viola, pífaro e pandeireta)

a lua desenha o céu
feita de papel de prata
a lua acende a planície
feita de papel de prata

cá em baixo berram tiros
no cavalgar de espingardas
uniformes cor de chumbo 
caras como caveiras

ai camponês    camponês
que não sabes o que és

a lua ri lá no alto
feita de papel de prata

ai cigano traficante
vendes bandeiras e pano
vendes relógio e G3
e G3 avariada 
ai cigano ai cigano
ai cigano português

ai camponês tu também
dessas planícies largas
a lua está a mirar-te
sempre em papel de prata
pede a G3 ao cigano
mesmo que seja de pano
e que esteja avariada
camponês ai camponês

a lua já te não mira
a planície é do sol
como um cavalo no mar
a planície que é tua
mais bonita que a lua

ai camponês camponês
que já não sabes o que és

a lua deixou a prata
de papel e fugiu

e os guardas republicanos
vão prá puta 
que os pariu
todos

Mário-Henrique Leiria



Tossan (António dos Santos).
Foto encontrada na net


TAL E COISA...

Quando ela me apareceu
vinha tal qual
como prometeu
E na intimidade
da solidão
ficamos enraizados
a trocarmos amor
E tal e coisa...
E coisa e tal...
Mais prá esquerda
mais prá direita
e continuamos
entre as fendas do silêncio
e porque tira e porque deixa
e tal e coisa e coisa e tal
ela já não dizia coisa com coisa
e eu tal e qual tal e coisa
tal como ela e eu tal qual

Tossan


EU AMO, TU AMAS

Eu amo, tu amas,
verbo amar.
Eu gosto, tu não desgostas,
verbo não desgotar.
E como não desgostaram
casaram,
verbo encasalar.
Até que um dia 
nasceu uma nascente de filhos
e nessa mesma noite
os filhos morreram 
com falta de ar, 
verbo acabar.
Pai e mãe ficaram todos de preto
verbo colonial.

Tossan


AMOR DESCALÇO
(Dedicado à Manuela)

Ela ia minada de beleza
E eu, pé-ante-pé, seguia-a
como um íman preso
à memória que fica.
No entanto, 
a indecisão se foi evaporando
até acender o meu espanto.
E para não me ouvir os passos
descalcei-me
E, descalço, ia no encantado encalço
do seu encanto.
De repente ela parou.
Fiquei mudo de atitudes!!!
E antes que eu falasse,
disse-me: Cale-se!
E eu calcei-me...

Tossan



Crónica de Mário Viegas publicada no Diário Económico em 1995




domingo, 28 de outubro de 2012

Europa Não! Portugal Nunca!


Ao fim de um ano, em 1995, a SIC "descobriu", que havia um candidato há Presidência e foi à sala da Companhia Teatral do Chiado. Mário Viegas estava em cena com Europa Não! Portugal Nunca!, que estreou em 1994. Versão completa sem legendas. PARA OUVIR ALTO!


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

VIVA O REI HERODES !!

ou
A PROBLEMÁTICA DAS CRIANCINHAS
COMO ESPECTADORES DE TEATRO

por
Mário Viegas

Mário Viegas. 1988.

As Crianças são seres que existem na humanidade há mais tempo do que as gravuras do Vale do Côa.
As Crianças são amadas por todos, é claro!  Cada Estrelinha que nós vemos no Céu, é uma Alminha de uma Criança que morreu.
E é que já morreram milhões e biliões!... E, cada dia, os astrónomos descobrem mais!...
Cristo dizia nos seus monólogos (quando andava em digressão pela Galileia): 
- "Deixai vir a Mim as Criancinhas!!".
Fernando Pessoa (já com "uns copos"...) dizia, num dos seus Poemas:
- "... o melhor do Mundo são as Crianças.".
O Povo, e a Pova, diz na sua Sabedoria :
-  As Crianças são a voz de Deus!".
As Crianças são tão amadas e desejadas que, até os antigos Comunistas, comiam sempre uma ao pequeno-almoço!!!
Mas...
Mas as Crianças, ou melhor, as "putas das criancinhas", são a pior Coisa que há durante um espectáculo de Teatro!!!
Basta estar uma na plateia, para o espectáculo dessa noite estar todo lixado, mais tarde ou mais cedo.
Elas chegam, geralmente acompanhadas pelos Pais...
Os pais são avisados na Bilheteira, que o espectáculo: "Talvez não seja apropriado..."; "É muito grande..."; "Não vão perceber..."; "Acaba muito tarde..."; "Tem cenas pouco apropriadas..."; "não podem fazer barulho..." etc, etc... etc, etc...  Tudo tentativas vãs, de afastar "tais Espectadores"...
O Papá ou a Mamã respondem, babados, ameaças terríveis :
- "O meu filho porta-se muito bem."; "Ai, ele é muito sossegadinho!"; "Ah! Ele está muito habituado!"; "O espectáculo não é para todos?!"; "Eu responsabilizo-me!..."; "Se ele fizer barulho, nós saímos." etc, etc, etc...
E elas entram!! Entram !!!

Eu conto-lhes só duas histórias, que se passaram comigo, como Actor, e que demonstram bem como esses "seres", podem dar cabo de uma representação.
Em 1992, na peça "Nápoles Milionária" de Eduardo De Filippo, eu representava o Pai da família.  O quarto acto então, era muito emocionante e genialmente escrito pelo genial autor napolitano.
O público ficava preso à acção, num silêncio emocionadíssimo agarrado pelo drama que se desenrolava, em cena.  A minha filhinha mais novinha estava a morrer, nos  bastidores, e não havia, em Nápoles, (onde decorria a acção, no tempo da II Guerra) remédios, nem dinheiro para a salvar.
Eu arranjara, para mim, uma marcação de cena muito boa!  Ficava todo o acto, sempre sentado de frente, numa cadeira colocada no meio da casa da família.  A luz da ribalta (uma luz que ilumina a cara, por baixo) salientava-me a expressão de dor, o olhar trágico, as lágrimas que caíam!...  E o público ficava ali, preso do meu rosto e olhar!...
Uma tarde, estava um calor horrível na nossa sala e eu suava em bica.  E nisto, no meio do maior silêncio e emoção teatral, ouviu-se a Voz Terrível de uma menina, que perguntou:
- "Oh mãe?! Ele está a chorar ou só está a suar?!"
Foi uma galhofa enorme! "caiu a casa!", como se costuma dizer... Estragou-se o De Filippo, a trágica história napolitana, as lágrimas de crocodilo do Actor, tudo!
Pensei (confesso!!) estrangular a menina!...

Outra história!  É que não há uma, sem duas....
No outro dia, em Loulé, ao apresentar o espectáculo "Europa Não!  Portugal Nunca!" (em que apresento a minha Candidatura à Presidência da Republica) e, depois de muito o público se ter rido e ter feito perguntas, houve um Espectador que disse que havia um menino que também queria fazer uma perguntinha.  Eu, armado em Actor Cómico, pedi a todos silêncio, porque era " a Voz de uma Criança, a Voz do Futuro" que ia falar! Estava, nesse momento, a falar-se de coisas muito sérias, graves e poéticas. Ouviu-se, então, a pergunta do menino em todo o teatro , apinhado de gente:
- " E vai dar auto-colantes?!!"
Foi a maior gargalhada e salva de palmas da noite. "Caiu a casa!".  E eu que me tinha esforçado tanto!! O cabrão do miúdo ganhou-me aos pontos!

As Crianças (como está provado) são um perigo como Espectadores, quer de uma peça dramática, quer de uma peça cómica.

Para terminar, aqui deixo uma discreta homenagem, como Actor, ao glorioso Rei Herodes, da Galileia, que numa única noite, resolveu "o assunto".  É o que vem no Novo Testamento...
Não escapou uma!!
Perdão!  Escapou um!!!  Escapou um!  Dizem que conseguiu fugir de burro com os Pais, da praia da Nazaré, para Belém...
Estamos lixados, há perto de 2000 anos, por causa dele!!...
Hossana!!!

Mário Viegas, Crónica no Diário Económico, 1995.

Herodes, O Grande

(Foto de Mário Viegas de citizengraveblogspot e a do Herodes estava na net)