domingo, 3 de fevereiro de 2013

Mário Viegas - O mal-amado


Texto de 
Fernando Dacosta 
Visão - 24 de Maio de 2001

Coisas boas em jornais


Actor, encenador, declamador, escritor, coleccionador, pintor, ele tornou-se muito cedo numa referência de ruptura, de provocação no meio cultural português. O espólio notável que deixou (faleceu em Abril de 1996), composto por manuscritos, quadros, desenhos, poemas, fotos, gravações, roupas, adereços, peças, cenários, o papel inovador que teve nos palcos e ecrãs, na rádio e televisão, as intervenções que protagonizou na política (UDP) e nos comportamentos são, na mostra agora organizada (Exposição no Museu do Teatro), temas que lhe recriam a vida, a carreira, a postura, a lucidez, a diversidade, a energia, a ousadia. «Rei» por três vezes, o Rei das Berlengas, o Rei D. João V, o Rei D. João VI, adorou sê-lo («acho graça à Monarquia, simpatizo até com o senhor D. Duarte») embora professasse sempre o republicanismo. O último espectáculo que criou (o monólogo mais feroz e alucinado feito entre nós) foi, aliás, uma sátira a uma hipotética candidatura sua à presidência da República.


Mário Viegas no hall do Teatro São Luis. 1995. 
Foto copiada da Visão.


Má-língua

«Sou muito crítico, muito má-língua», comentava-nos em madrugadas de copos e imprecações, pelo Montecarlo, Estábulo, Flor do Mundo, Brasileira, Alsaciana. «Essa é uma característica da minha geração... bom, não gosto nada da palavra geração, não há gerações, há, sim, grupos de pessoas com sensibilidades, cumplicidades afins, independentemente da idade ou da formação.»
Pertencia, desde que veio aos 17 anos de Santarém (onde nasceu em 1948) para a Faculdade de Letras e para o Conservatório, a grupos que cultivavam a grande frontalidade, a grande irreverência: «A gente encontrava-se nesses cafés para dizer mal uns dos outros. Isso era muito importante», dizia, «porque representava um contraponto para nós. Daí que eu me tenha habituado a emitir opiniões, a ouvir opiniões. Aprendia-se imenso discutindo, convivendo, bebendo, engatando. Agora, ninguém se reúne, ninguém convive, ninguém discute, ninguém fala. A cidade desertificou-se.»
Deprimia-o o não se aproveitar a sabedoria, o conhecimento dos mais velhos, «dos indivíduos da minha idade, que vieram do antigo regime, que têm experiência, trabalho feito. Ninguém quer saber de nada. Não há consideração nenhuma. Faltam figuras que dêem exemplos de civismo, de solidariedade. Eu tive várias referências dessas. O Zeca Afonso, o Cesariny, o Raul de Carvalho, o Ary dos Santos, o Mário-Henrique Leiria, o Tossan, o José Gomes Ferreira, o Carlos Paredes. A mediocridade que tomou conta, democraticamente, do poder, tanto no governo como na oposição, quer apagar essa memória, quer esvaziar essa cultura, que são a nossa alma».
A qualidade, a criatividade e a comunicabilidade eram-lhe um triângulo sagrado. «Acreditei sempre que valia a pena fazer um teatro voltado para o público, nunca me interessou fazê-lo para o meu umbigo, para o meu grupo de amigos, para o lobby dos críticos, dos jornalistas, dos corifeus», repetia. «O teatro destina-se a dar prazer às pessoas, a fazê-las rir e chorar. Sempre tive um enorme respeito pelo humor, embora o humor seja visto entre nós com preconceito..»
Defensor do talento individual, preservava com ferocidade as hierarquias e o vedetismo: «Nunca gostei de elencos por ordem alfabética, por ordem de entrada em cena, a Maria Cachucha não é a mesma coisa que a Palmira Bastos, o Zé da Esquina não é a mesma coisa que o Alves da Cunha»
Não tinha desejo, nem ambição de erguer grandes espectáculos, grandes encenações: «O importante para mim é ter as coisas equilibradas, ter um público certo, ter gente que goste de nós. Eu tenho, felizmente. As pessoas respeitam-me porque sabem que não me vêem em chachadas, não me vêem em telenovelas. Toda a gente está a fazê-las, já agora quero ser excepção. Não aceito participar em concursos, criar bonecos que nos aprisionam,  recuso, igualmente, entrar em publicidade»


«Nunca gostei de elencos por ordem alfabética, por ordem de entrada em cena, a Maria Cachucha não é a mesma coisa que a Palmira Bastos, o Zé da Esquina não é a mesma coisa que o Alves da Cunha» Copiado da Visão.



Central secreta


Manter os valores escolhidos (plasmados em interpretações como O Suicidário, Ubu, Baal, À Espera de Godot) era-lhe um motivo de apaziguamento, de orgulho: «Não é em vão que uma pessoa se abandalha, se comercializa... se se pensa que o que é preciso é ganhar o nosso, que é tudo a mesma coisa, que não há ética, nem princípios, que o que conta é apoiar o que está a dar, o que está no poder, acaba por criar-se má consciência, mesmo que se tenha muito dinheiro no banco.»
Aterrado com o liberalismo selvagem e a boçalidade mercantilista que via emergi-lo, foi dos primeiros a denunciar, entre nós, o nivelamento que, a coberto da democracia, estava «a achincalhar tudo, a fazer tábua rasa de tudo. É terrível, parece que se instalou uma central secreta para destruir a pouca cultura que se faz em Portugal, a literatura, as artes, o cinema, o convívio, os afectos... Essa central tem uns escribas nos órgãos de informação que estão a desenvolver um péssimo trabalho. Há da sua parte verdadeira xenofobia, verdadeiro racismo contra a nossa identidade. Silenciar é pior do que dizer mal, é matar em vida. Isso magoa-me muito. Há uma dificuldade enorme em pôr uma notícia num jornal, só os escândalos interessam. Um novo fascismo está a germinar nas nossas democracias!»
Mário Viegas criou, com a sua maneira de ser, mais inimizades em 25 anos de actividade (morreu com 48) do que amizades – enfatizava. «Sempre deixei sair pela boca fora o que me apetecia, e pela boca morre o peixe... Não me considero, porém, nenhum perseguido, nenhum maldito, nada disso. Quando querem atingir alguém entre nós pegam nessas coisas. Só que a pequena trica do sexo, da bebida, da droga já não serve, no nosso meio ninguém pode levantar a mão.»
De clarividência fulminante, acolhia-se àqueles de quem gostava, por isso gostava de tão poucos, como a entidades de protecção dilatadora.
O aturdimento pela bebida, quando soube da irreversibilidade da doença que o apanhou, deflagrou-o até ao delírio: atacar os outros era um maneira de resguardar-se da destruição, de adiar-se a ela.
Ele foi um dos portugueses que, no século XX, mais riu, feriu, se feriu entre nós.

Fernando Dacosta
Visão
24 de Maio de 2001



«CANDIDATURA À PRESIDÊNCIA - O monólogo mais feroz e alucinado feito entre nós»
Copiado da Visão.