Memórias de Mário Viegas
contadas pela cúmplice de uma vida
Entrevista ao jornal O MIRANTE em 16 Março 2011
«tela de Mário Viegas - "Mário, Sempre!" - que tem seu poiso na casa de seus Pais, em Santarém. Fotografia da tela é do Pedro da Silva, a do trabalho em si, é de Ilidio Teixeira!» (texto e foto de porabrantes.blogs.sapo.pt)
Hélia Viegas foi a grande cúmplice na vida do irmão, o actor Mário Viegas, falecido faz dia 1 de Abril 15 anos. Nesta entrevista, conta como era o relacionamento em família e como esta reagiu à doença que acabaria por o vitimar. Licenciada em farmácia e em enfermagem, Hélia Viegas, 64 anos, tem em mãos a tarefa de ordenar e dar a conhecer à comunidade o espólio que ilustra a vida e obra da família, onde não falta gente ilustre.
A memória de Mário
Viegas tem sido bem cultivada em Santarém?
Julgo
que sim. O meu irmão partiu há 15 anos e sempre que há oportunidade as pessoas
da cidade ligadas ao Centro Cultural, ao teatro, à câmara, prestam-lhe essa
homenagem justa. Está na memória das pessoas, seja em Santarém ou noutro lado
qualquer. Gostam de falar dele, de histórias que têm com ele. E Santarém não
foge a essa situação.
Mário Viegas vai ter
uma escultura evocativa no Jardim da Liberdade, em Santarém.
O
presidente Moita Flores falou-me disso no ano passado, num almoço do 25 de
Abril em Grândola. E já fui chamada à câmara para conhecer a maqueta da
escultura. Gostei muito do trabalho.
Sendo o seu irmão um
crítico do sistema, ser homenageado pelo poder político não deixa de ser
irónico. Acha que ele ia gostar?
Provavelmente
acharia que era desnecessário. Mas gostaria, mesmo que visse isso como um
exagero.
Mário Viegas era uma
pessoa sensível às críticas?
Ligava
muito às críticas. Via-as como um incentivo e prémio pelo seu trabalho. E a
crítica, quando honesta e sincera, ajudava-o a crescer. Era muito importante
para ele ouvir a opinião de duas ou três pessoas, sobretudo quando fazia uma
estreia. Só não lidava bem com a má crítica gratuita, como ninguém lida.
Como irmã mais velha,
sente que exerceu alguma influência sobre o seu irmão que o levasse a seguir a
vida artística?
Nenhuma.
Penso que o meu irmão entrou com um determinado programa para cumprir na sua
vida. Era uma programação que tinha que terminar. Desde pequenino ficou
direccionado para o teatro. Como irmã mais velha - a nossa diferença é de 22
meses - é natural que tenha tido nas brincadeiras alguma interferência. Mas não
sinto que tivesse um ascendente sobre ele. Eu tinha um grande imaginário, acho
que continuo a ter, e ele encontrou em mim uma pessoa que estava pronta para o
seu imaginário.
Havia uma empatia
natural.
A
nossa relação foi sempre empática. Ele participava nas minhas brincadeiras e eu
participava nas dele. Nascemos os dois assim. Éramos muito parecidos nessa
parte criativa, eu de uma forma e ele de outra.
Já se adivinhava em
criança que estava ali um potencial génio?
Não
gosto da palavra génio, porque dentro da família nunca pensámos nessa situação,
víamo-lo mais como uma pessoa excepcional. Pensei isso sempre, desde pequenina.
E os meus pais foram achando isso também. Eu dizia mata e ele dizia esfola. Ele
era a única pessoa que me entendia em toda aquela criatividade. E eu com ele
idem. Ajudei-o imenso nos teatros pois gostava muito de trabalhos manuais, de
desenho, de pintar, de fazer fatos para os fantoches, cenários, recortes,
composições.
Eram irreverentes e
rebeldes em jovens?
Éramos,
cada um à sua maneira.
A senhora serenou e ele
manteve-se rebelde.
Acho
que nunca serenei muito. Houve sempre uma parte contestatária. Fomos sempre
muito críticos. E a família onde estávamos inseridos percebeu sempre o espírito
crítico que tínhamos em relação à forma como se vivia neste país. Mas tenho uma
característica que penso que me acompanhará sempre: sou pela harmonia das
coisas. As discussões, as brigas, a agressividade põem-me desequilibrada. É uma
doença.
Prefere evitar o
confronto?
Quando
enfrento o confronto sou uma pessoa péssima, porque não o sei gerir.
Por não gostar do
confronto é que nunca se deixou levar pelo canto da sereia da política?
Talvez.
Tive alguns convites, lembro-me disso. Mas sempre fui uma pessoa ligada ao
ideal republicano e a uma atitude socialista. Não me vejo noutra posição. Agora
aquilo que aprendi com a Igreja Católica percebi que era igual ao futebol, à
política. Há uma sensação de que ao obedecer às regras estou a impor a mim
mesma algo que vai contra a minha própria natureza e muitas vezes contra os
meus valores. E portanto prefiro não estar.
Não gosta de vínculos?
Tem
a ver com os meus valores pessoais. E sendo assim é melhor não estar porque sei
que tenho dificuldade em gerir essas situações de conflito.
Como reagiram os seus
pais à decisão do seu irmão em ser actor?
Lidaram
bem. Já tínhamos dezenas de espectáculos de fantoches em cima, porque começámos
aos 7 ou 8 anos a fazer espectáculos nas festas de amigos. A minha mãe deu um
teatro de fantoches ao meu irmão e eu tinha um trabalho intenso de fazer a
preparação dos cenários. Ele fechava-se no quarto a ler e a inventar o texto e
eu fazia a parte toda de adereços.
A parte operária era
consigo.
A
parte trabalhadora, de retaguarda. E era muito cúmplice quer em relação ao meu
irmão quer em relação ao meu pai na farmácia. Mas, como dizia, para os meus
pais não foi surpresa o meu irmão querer ser actor profissional. Ele apresentou
essa situação aos meus pais quando tinha 19 ou 20 anos. Disse que ia para o
conservatório e o meu pai não se admirou nada, pelo percurso que tinha desde
miúdo. Depois há um dia que chega a casa e disse que se tinha profissionalizado
e entrado em Cascais e que tinha deixado de estudar História, curso em que
estava no terceiro ano na Faculdade de Letras. Foi natural, e para mim
naturalíssimo.
Como era o seu irmão em
termos de trato pessoal? Por vezes parecia uma pessoa um bocado ríspida…
Era
uma pessoa espectacular, com uma auto-disciplina rigorosa que exigia muito de
si. Na família era uma pessoa observadora, calada, com muita graça. Tinha uma
linha satírica e de crítica social que já vinha do meu pai e do meu bisavô
Francisco José Pereira. Nasceu com eles. Em casa era uma pessoa normal, que
gostava de estar em família, sobretudo nos últimos 20 anos.
Mário Viegas tinha
consciência da doença que acabou por o vitimar?
Teve.
Perfeitamente.
E como lidou com essa
situação?
Ensinou-me
mais uma vez muito. Houve um dia em que um dos actores que trabalhava com ele,
já falecido, me chama e diz que o meu irmão precisava de falar comigo. Já tinha
reservado um quarto no Hotel Borges, em Lisboa, onde o meu irmão vivia, e pediu-me
para não dizer nada aos meus pais. E nessa noite o meu irmão disse-me o que se
estava a passar e que ia confirmar o resultado do exame no dia seguinte e
queria que eu estivesse com ele.
Isso foi quando?
Em
Junho de 1993. Quando soube o resultado ficou internado no Hospital de Santa
Maria e eu passei a estar com ele, com a proibição completa de dizer alguma
coisa em casa. Foram dos tempos mais difíceis da minha vida. O marido que eu
tive tinha saído de casa dois meses antes dessa notícia. A minha filha tinha
ido para Trás-os-Montes para a universidade, eu estava na farmácia e tinha a
loja dos brinquedos. Tinha a família aqui em casa e levava a vida a ir para
Lisboa sem poder explicar aos meus pais o que lá ia fazer. Era eu que tratava
dele em secretismo, pois quando saiu do hotel foi viver para a minha casa em
Lisboa. Continuei a fazer esse tal serviço de bastidores até ao fim.
Os seus pais nunca
suspeitaram de nada?
Nunca.
Só souberam quando o meu irmão lhes decidiu contar. Foi no Natal de 1993 que disse
aos meus pais. Foi uma situação muito difícil. E foi aí que os meus pais
perceberam que eu andava já há seis meses a tratar do meu irmão. Ele programou
meticulosamente os três últimos anos de vida. Foi uma coisa impressionante.
Para os seus pais deve
ter sido um choque tremendo.
Foi
um choque muito grande. Os meus pais temiam essa situação porque conheciam a
homossexualidade do meu irmão.
Como é que eles lidavam
com a homossexualidade do seu irmão, numa altura em que muitos preconceitos
ainda não tinham sido derrubados?
Lidava-se
com discrição e com respeito. Nunca soube a quem é que o meu irmão esteve
ligado e os meus pais também não. Não tinha nada a ver com actores da companhia
dele. O meu irmão sempre foi muito discreto nos relacionamentos que teve, nunca
impôs absolutamente nada à família nem presenças de ninguém.
Hélia
Viegas em entrevista ao jornal regional O MIRANTE em 16 Mar 2011.