Camilo Pessanha foi, um dos precursores do modernismo português, não obstante ter sido contemporâneo da geração do «Orpheu». Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro foram seus admiradores e seus correspondentes, notando-se na sua poesia inegáveis influências do poeta da «Clepsidra». O «JL» evoca na presente edição este vulto literário um tanto esquecido, mas que enfileira ao lado de Camões, Pessoa, Cesário e poucos mais na galeria de honra da poesia portuguesa.
Camilo Pessanha.
Foto copiada do Jornal de Letras.
Uma entrevista feita por Mário Viegas com Celina Maria Veiga de Oliveira, investigadora da vida do poeta Camilo Pessanha, e publicada no Jornal de Letras, Artes e Idéias de 7-08-90.
Mário
Viegas — Um dos maiores actores de
teatro portugueses contemporâneos, também consagrado como declamador de poesia,
admirador incondicional do autor da «Clepsidra», teve, em Macau, com uma
investigadora da vida do poeta, a seguinte Conversa vadia sobre Camilo Pessanha.
Celina
Maria Veiga de Oliveira está a preparar, em Macau, um livro sobre a actividade
de Camilo Pessanha enquanto juiz e advogado naquela comarca portuguesa do
Oriente, entre os anos de 1896 e 1926. O
diálogo que a seguir se reproduz integralmente contribui para esclarecer alguns
aspectos mais obscuros da vida do grande poeta.
Maria Celina Veiga de Oliveira: «Há uma dicotomia
perfeita entre o Poeta e o Homem de Leis»
Foto copiada do Jornal de Letras.
— Mário Viegas — Há
em Macau algum itinerário de Camilo Pessanha possível de reconstituir? Por
exemplo, como há em Lisboa o itinerário do Pessoa ou o do Eça de Queirós?...
— Celina Maria Veiga de Oliveira —
Há! Ele morava aqui bem perto do actual Tribunal, na Calçada da Sé.
— Ainda existe a casa dele?
—
Não, já não existe. Mas há cá uma neta que é muito minha amiga.
— Onde é a sepultura
de Camilo Pessanha?
—
É no cemitério. Fico com muita pena, de
não ter ido lá contigo...
— Gostava imenso de
fazer lá umas fotografias...
—
As vezes vou lá e deixo uma florzinha.
— E tem uma lápide?
—
Sim, tem.
— E tu és a única
pessoa que lá vai deixar flores?
—
Não! Não sei... porque eu encontro lá flores.
— Vivas?! Não são
de plástico?
—
Sim, vivas.
— Quem serão essas
pessoas que deixam flores na campa do Camilo Pessanha?
—
Há muitas pessoas, cá de Macau, com imensa sensibilidade poética! Pessoas com
imensa cultura, que gostam imenso de Camilo Pessanha. O Camilo Pessanha morreu
no dia 1 de Março de 1926. Repara que em 1986 fez 60 anos que morreu. E nós tivemos aqui uma série
de actividades para comemorar Camilo Pessanha.
— Quem é que as organizou?
—Foi
a direcção dos Serviços de Educação e o Instituto Cultural de Macau.
— O que fizeram?
—
O meu amigo Amílcar Martins dramatizou
uma série de poesias de Camilo Pessanha. Várias pessoas participaram nessa
encenação e cada uma escolheu o poema de que mais gostava. Depois, fomos ler
para o público, na galeria por cima da Livraria Portuguesa, com um cenário
feito pelo arquitecto Carlos Moreno, muito bonito, muito adequado. Fazia um
bocado lembrar a queda de água «Clepsidra». Nós encenámos e dramatizámos poesia
de Camilo Pessanha. Um conjunto de alunos do liceu disse também poesias de
Camilo Pessanha, juntamente com professores. Eu própria fiz uma conferência
sobre Camilo Pessanha.
— E foi publicado o
caderno de Camilo Pessanha...
—
O caderno, exactamente.
— Há quanto tempo é
que existe o retrato de Camilo Pessanha nas notas de 100 patacas?
—
Ora... isso é fácil, vai-se lá ver.
— De quem seria a
ideia?
—
Não sei. Mas talvez de alguém ligado ao Banco Nacional Ultramarino. Mas isso é
uma coisa que se poderia perguntar a um dirigente actual do BNU.
— Eu sempre gostei
muito de Camilo Pessanha, mas a pessoa que me chamou a atenção para ele e para
a sua importância foi um outro grande poeta português nosso contemporâneo, o
Eugenio de Andrade... Se eu agora quiser fazer um itinerário de Pessanha, só
encontro o túmulo?
—
Não, encontras também a Baía da Praia Grande, onde ele era visto muitas vezes
com o Mestre-China, um mestre chinês que era o seu professor de chinês. Porque
o Camilo Pessanha aprendeu a falar e a escrever chinês. Ele tornou-se um
razoável sinólogo. Até por aí se vê que ele era um homem muito especial. As
«Oito Elegias Chinesas» que nós temos e que ele
traduziu, são muito bonitas. Ele tinha a sua alma de poeta e, além
disso, sabia traduzir muito bem. E pouco mais temos do que essas elegias
traduzidas do Chinês para o Português.
— Não há nada
traduzido pelo Camilo Pessanha para chinês?
—
Não...
— E não há a ideia de fazer publicar a
«Clepsidra» em tradução chinesa?
—
Não. Não sei se há a ideia... Presentemente não está traduzida para chinês. Era
lindíssimo que isso acontecesse.
— Importante!
|
Camilo Pessanha 1894?
Foto da Biblioteca Nacional |
—
Importante! Pois era...
Uma
neta viva
— Mas ainda há
gente viva, testemunhas da vida de Camilo Pessanha?
—
Sim, a neta, a Sr.a D. Maria Rosa. E uma senhora espectacular.
— Fala português?
—
Fala um português correctíssimo.
— Que idade tem?
—
Deve ter setenta e... Ela disse-me que quando o avô morreu ela deveria ter uns
onze anos, mais ou menos.
— E ela lembra-se
do avô?
—
Lembra-se perfeitamente do avô. Era muitíssimo amigo dela A senhora tem uns
olhos meio azulados. E engraçado... Ela tem muito sangue português.
— Entrevistaste-a?
—
Entrevistei-a e conheço-a muito bem. Ela vai sempre às minhas conferências
quando eu falo do avô. Gosta imenso do avô.
— O que diz ela
dele?
—
Que ele era muito amigo dela. Tinha-lhe prometido um piano. Ela andava a
aprender piano e ele morreu sem lhe ter comprado o piano. Via-o muitas vezes!
Ia sempre visitá-lo aos fins-de-semana. Ele estava na cama com imensos cães à
volta e tinha uns tapetes persas ao lado da cama. Era muito carinhoso para com
ela, passeava-a muito e dizia com um certo orgulho: «Esta é a minha neta»! O
que é engraçado, porque ele nunca aceitou muito o filho, o pai da senhora. Esta
senhora é filha do único filho do Camilo Pessanha.
— Ele só teve um
filho?
— Só teve um
filho.
— De
quem?
—
De uma chinesa. De uma concubina com quem ele começou a viver pouco tempo
depois de ter chegado a Macau.
— Mas era fácil
chegar aqui um português e arranjar uma concubina permanente?!
—
Fácil era! Só que não era muito usual, porque ele até nisso foi excêntrico.
Repara que talvez isso explique porque é que ele viveu um bocado isolado da
comunidade portuguesa. Era respeitado porque era um homem, de facto,
invulgarmente inteligente, muito sabedor. Era um homem bom. Eu estou agora a
conhecer melhor esta faceta dele.
— Era professor,
era jurista...
—
Olha, eu vou-te contar o itinerário dele. Chegou em Abril de 1894 para ser
professor de Filosofia no Liceu que tinha sido criado um ano
antes, em 1893. Nesse liceu foi professor de várias cadeiras: Filosofia,
Direito Comercial e História da China. De facto, o tipo sabia muita coisa!
Também foi professor de Português no Liceu e na Escola Comercial: Ele acumulava
com outras funções, porque depois concorreu ao lugar deixado vago de conse
rvador do Registo Predial. Depois tomou-se conservador sempre que o juiz da
Comarca de Macau se ausentava por qualquer motivo. Ele era o substituto legal.
Portanto, ele era juiz substituto, conservador. Era auditor dos Conselhos de
Guerra. Era vogal da Comissão da Assistência Judiciária, professor do Liceu,
Sinólogo!... Como tu vês, era um homem muito multifacetado.
O
poeta jurista
— Seria por
acumular vários «tachos» ou por necessidade?...
—
De quê? Dinheiro?!
— Como há muitos
aqui que vivem só para ganhar patacas...
—
Não, não...mas deve ter ganho dinheiro na advocacia, porque ele foi advogado.
— E foi advogado,
quer de chineses, quer de portugueses?
—
Ah, sim, sim...
— Dos ricos e dos
pobres?
—
Dos ricos e dos pobres. Embora os
advogados se fizessem pagar bem! Os processos que eu tenho encontrado no
Tribunal...
— Já vamos, falar
disso...
—
Digamos que a maneira como ele intervinha junto dos pobres era mais como juiz.
Como advogado, a sua actuação era para casos mais difíceis. Vou contar-te só
esta: houve um advogado cá da terra que no princípio era um bocado inimigo do
Camilo Pessanha mas que se retratou posteriormente e que disse uma coisa gira:
«Causa defendida pelo Pessanha é causa ganha.» Portanto, os casos difíceis,
sobretudo aqueles que tinham de ir para o tribunal da Relação de Nova Goa (que
era o Tribunal do Recurso), daqui iam para Goa e de Goa é que iam para Lisboa.
Normalmente, para casos difíceis era o convidado para fazer as alegações, para
fazer os agravos, para fazer os recursos para Goa.
— Estás a falar-me
da parte jurídica. Para o trabalho que estás a fazer. Foste encarregado por
quem?
—
Fui encarregado pelo Gabinete do Secretário adjunto do dr. Murteira Nabo, que é
Secretário adjunto da Educação, Saúde e Assuntos Sociais, e pelo Secretário
adjunto da Administração e Justiça dr. Magalhães e Silva.
Camilo Pessanha com o amigo João Pereira Vasco em Macau por volta de 1896.
Foto encontrada em tertuliabibliofila.blogspot.pt
— Há quanto tempo
foste encarregado desse trabalho?
—
Em Fevereiro de 1989 é que os gabinetes destes dois Secretários adjuntos do
Governo de Macau me incumbiram, juntamente com o Instituto Jurídico de Macau.
Houve uma comjugação de interesses. Convidaram-me para eu ir para o tribunal...
— Que Tribunal?
—
O Tribunal da Comarca. Não existe outro
aqui em Macau. Para eu inventariar e sistematizar todo o espólio jurídico de
Camilo Pessanha.
— E como é que tu
fazes? Chegas lá e... Como vais ver? Como estão os papéis?
—
Num caos absoluto! Vou à procura de alguma coisa que seja do Camilo Pessanha.
Como é evidente, eu sei a data em que ele chegou, sei a data em que ele morreu
e também sei as datas em que ele esteve em Lisboa. Em Lisboa... quer dizer, em
Portugal, porque a estada dele em Macau não foi contínua.
Pesquisa
no Tribunal
—
Como é
o teu dia-a-dia?
—
Fui ao arquivo, obviamente, ao arquivo do tribunal, e pedi, com a ajuda dos
funcionários do tribunal, todos os processos desde 1894 até 1926.
— Não estão
escritos à máquina, a maior parte?
—
Mais ou menos... A partir da República...
— ... Chegaram as máquinas de escrever...
—
... apareceram as máquinas de escrever! Mas eu vou pôr isso, num livrinho que
vou fazer e depois eu digo-te exactamente a altura. Antes, era tudo
escrito à mão e a letra do Pessanha é
interessantíssima, porque é uma letra cheia de personalidade, mas dificílima de
se ler!
— Vê-se logo qual é
a letra do Pessanha?
—
É imediato! Eu conheço muito bem a letra dele! Eu topo logo...
— Não há nenhuma
letra igual?
—
Não há nenhuma letra igual.
— E então
descobres, como arqueóloga, a letra do Pessanha e ficas toda satisfeita...
—
Muito contente! E ponho de lado.
— Não lês logo?
—
Fazemos primeiro a seleccão dos processos não é?! E depois, a partir da
selecção, agrupamos por: Camilo Pessanha-Advogado, Camilo Pessanha-Juiz, Camilo
Pessanha-Conservador do Registo Predial...
Postal enviado por Camilo Pessanha a um amigo.
Foto da Biblioteca Nacional
— E guardas? Como?
—
Está tudo guardadinho no gabinete. Estão os diversos montes.
— E fotocópias?
—
Tudo quanto é de Camilo Pessanha vai ser microfilmado.
— E esse espólio
vai ficar guardado pelo Governo de Macau, ou vai para a Biblioteca Nacional, em
Lisboa?
—
Isso é uma decisão de natureza política. Não me compete a mim dizer o que se
vai fazer. Mas de qualquer modo, desde que fiquemos com a microfilmagem, há
sempre a segurança de que o espólio dele poderá ser futuramente consultado em
Portugal.
— Mas tu vês logo?
Tens logo uma louca curiosidade?!
—
Eu vejo qual é o teor do processo. Há um, que estou a analisar, que é
interessantíssimo: o caso da venda de menores. Que aqui na zona era uma coisa habitual.
— Para quê? Para a
prostituição?
—
Para várias funções. Os rapazes, normalmente, eram vendidos para casais que não
tinham filhos varões, porque na China há sempre a preocupação de haver um filho
varão, que perpetue a família.
— Eram vendidos bebés?
—
Bebés, crianças menores. Que assegurassem depois o ritual dos cultos dos
Antepassados, que é uma coisa muito importante para todos os chineses. As
rapariguinhas eram aquelas que se vendiam com maior abundância! Eram vendidas
para serviçais ou, muitas delas, a prostituição.
— E ele esteve
muito ligado a esse tipo de processos?
—
Ele, como era juiz, sempre que lhe aparecia uma nota a dizer: «foi preso fulano
de tal por ter sido encontrado a vender um ou uma menor», era evidente que
tinha de tratar do problema e de dar andamento ao processo.
— Ele não tinha
muita possibilidade de escolha de temas que gostaria de defender ou de ajuizar.
Mas achas que havia algumas tendências?...
—
Eu gostava de não te revelar muito, porque estou a fazer um livro...
— Explica lá melhor
que livro é esse.
—
E sobre a actividade de Camilo Pessanha enquanto homem de leis. Isto é, como
advogado, como jurista.
— Durante este
estudo sobre Camilo Pessanha – jurista, achas que poderás encontrar no meio
desse espólio, desses papéis...
—
... alguma Poesia?...
— Exactamente!!
—
Não, não! Era um grande sonho meu, meu Deus, encontrar alguma poesia do Camilo
Pessanha abandonada...
— ... Perdida, esquecida...
—
Esquecida... que ele tivesse feito num momento de delírio... Mas não.
— Há «poesia»
nestes papéis de jurista? Achas que se sente que é um poeta? Achas que se nota
aí o traço, o vocabulário, as imagens, o dedo do grande poeta Camilo Pessanha?
—
Nota-se que é um grande escritor, mas há uma dicotomia perfeita entre o Camilo
Pessanha-Poeta e o Camilo Pessanha-Homem de leis.
Wenceslau de Moraes com um dos seus filhos e o poeta Camilo Pessanha. 1897. Macau.
Foto encontrada em macauantigo.wordpress.com
— São dois
heterónimos?
—
São duas personalidades. Eu não direi que é um heterónimo. Acho que ele não
tem nada a ver com o Fernando Pessoa. Acho que é uma pessoa que na percepcão de
um caso, enquanto jurista, enquanto advogado, enquanto magistrado, é uma pessoa
que an alisa o processo de uma maneira calma, serena e objectiva. E um homem
que tem um estilo lindíssimo, mas completamente diferente do estilo literário
dele. Tu deves conhecer, aquele prefácio que ele fez para o livro do dr. Morais
Palha. Aí já se nota uma dicotomia muito grande em relação à parte poética
dele. Ele é, como prosador e como homem de leis, um homem muito objectivo,
muito sereno, cheio de convicção, pela força dos argumentos que apresenta. E
muito humanitário. É um homem que procura ver toda a envolvência das pessoas
que estão metidas no processo! Dá-me ideia que é uma pessoa que tenta ver o
lado humano dos arguidos.
— Objectos
pessoais? Fotografias? Há alguma coisa inédita?
—
Vou fazer-te um apelo. É que possas pedir em Portugal às pessoas que tenham
alguma coisa dele, que no-las emprestem!
— Mas achas que há?
—
Deve haver!
— Vamos imaginar
que tu querias criar, aqui em Macau, uma Casa de Camilo Pessanha. O que havia
aqui em Macau que fosse novidade?
—
Essa ideia não está só no ar. Porque se está a pensar muito a sério em fazer-se
isso: uma Casa Camilo Pessanha.
— Já que estamos a
falar de casas, eu fiz uns «slides» lindíssimos da Rua Camilo Pessanha, que é
uma rua muito pequenina com tudo sujo. É uma rua sem «importância» nenhuma! Tu
não achas que merecia haver aqui uma Avenida Camilo Pessanha?
—
É natural! Olha, é uma ideia para se
poder sugerir às pessoas competentes. Mas sabes uma coisa? Nós vamos-nos embora
em 1999 e depois não tenhas ilusões...
— Depois eles vão
mudar a placa...
—
Não tenhas ilusões. Eu penso que depois...
— Pelo menos
dar-lhe a importância de uma avenida! Estas coisas são sempre ridículas, mas
Pessanha é um grande poeta português! Achas que haverá outro Camilo Pessanha
que tu ainda não descobriste ou que ainda ninguém descobriu aqui... que esteve
aqui em Macau? Português?
—
Tu sabes que passou por aqui o Wenceslau de Moraes. Não tão profundamente como
Pessanha, mas também um exilado voluntário como Pessanha..
— Mas que não
gostava dos chineses, gostava mais dos japoneses...
—
Pois!
— Não haverá outro
poeta qualquer? Não se estará a cometer uma grande injustiça e não vai haver
tempo de o descobrir?
—
Não! Olha, a drª Graciete Batalha, que é uma grande intelectual aqui de Macau,
disse-me uma coisa muto interess ante: «Macau que tu conheces, que tem este rio
tão bonito, estas águas tão bonitas, tem um pôr do sol tão bonito... e que tem
estas tonalidades todas, nunca foi» — diz ela
— «Terra de Poetas». E há uma
explicação. Tu repara que, de uma maneira geral, as pessoas não faziam como o
Camilo Pessanha. As pessoas vinham, estavam e iam-se embora. Camilo Pessanha é
que, de facto, se deu completamente a Macau.
— Mas há grandes
poetas chineses de Macau? Chineses.
—
Já se fez essa pergunta. Eu acho que não. Que engraçado, não sei porquê...
— Achas que as
imagens de Macau, a cor de Macau, a luz de Um homem «inconvencional» Macau, os
cheiros de Macau, os sons de Macau, estão na poesia de Camilo Pessanha?
—
Esse também é outro dos grandes temas das pessoas que estudam Camilo Pessanha:
será que Macau, será que o Oriente, terá influenciado Camilo Pessanha para
«produzir mais poesia»? Ou será que ele aqui, pelo contrário perdeu um bocado
«a veia poética»? Sabes que os intelectuais que têm estudado Camilo Pesanha não
têm a mesma opinião. Uns dizem que, sim senhor, ele aqui entusiasmou-se pela
ambiência de Macau e produziu Poesia. Há outros que não, que dizem que ele
quando veio para aqui perdeu um bocado «a sua veia poética». Tu conheces «A
Viola Chinesa», que é tão bonito... Há certas poesias que são
nitidamente influenciadas...
— Só é possível
terem sido escritas...
—
Exactamente: aqui em Macau!
O
opiómano
— Ele foi muito
dependente do ópio. Como é essa história? Tu começas-te esta conversa por
contar-me que ele chegou cá e juntou-se com uma concubina chinesa.
—
Sim. Uma concubina chinesa, de quem teve um filho.
— E ele gostava
mesmo dela? Quantos anos viveram juntos?
—
Não sei. Ele viveu sempre com ela até ela morrer. Ela morreu primeiro.
— O Camilo Pessanha morreu de quê? Sabes?
—
Teoricamente, Camilo Pessanha morreu de uma tuberculose pulmunar. Mas eu estou
convencida de que ele morreu.:. (e até porque sempre foi de uma estatura física
muito frágil desde miúdo e como era do conhecimento geral, ele era opiómono)...
eu estou convencida de que foi o ópio a causa da sua morte.
— Existiam casas
com ópio abertas aqui em Macau? Como era isso?
—
Havia sim!...
— Quando terminou
isso legalmente?
—
Legalmente não te posso também dizer a data, ou a altura exacta.
— Mas era uma coisa
mais ou menos consentida e aceite pela sociedade?
— Sim, era aceite!
— Um juíz que toma
ópio e é viciado em ópio! Ia para as casas dos chineses tomar ópio? Andava drogado?
—
Não. Ele fumava ópio em casa. Não precisava de ir às casas de ópio.
— Portanto, não era
um pecado nem um vício horrível que o impedisse de ser juiz?
—
Repare uma coisa: eu penso que isso terá causado problemas ao Camilo Pessanha.
Mais o facto de ele ser uma pessoa que vivia com uma concubina chinesa, o que
já não era habitual...
— ... Era um escândalo para os portugueses e não
para os chineses?
—
Pois! Para a sociedade portuguesa de Macau...
— Mas era aceite
nos clubes, nos jantares, nos hotéis, pelos governadores?...
—
Sim, nós temos uma fotografia dele com o governador da altura.
— Ele nunca foi
convidado para governador?
—
Não, não! Nem nunca aceitaria ir para governador!
— Mas para reitor
do Liceu, sim!
—
Sim.
— Era um cargo
importante.
—
Em 1925 ele foi reitor substituto do Liceu.
— Mas era
conhecido. Era um homem magro com umas barbas, esquisito, exótico e «um
drogado»...
—
E um opiómano, sim senhor, eu gosto mais de lhe chamar opiómano. Sabes que além
dissó ele teve duas concubinas: a mãe do filho, que morreu, e depois a filha
dela.
— O que foi outro
escândalo?...
—
Para a comunidade chinesa era normal! Para a comunidade portuguesa é que não
era muito bem aceite. Porque ele tinha uma vida irregular para os cânones
sociais da época.
— Os portugueses
frequentavam as concubinas chinesas, mas...
—
Mas tinham o seu «lar sério»...
— Católico...
—
Exactamente!
Alunos e professores do velho Liceu de Macau, no ano lectivo 1924-25,
distinguindo-se Camilo Pessanha (2a. fila, o 1º da esquerda de chapéu).
Foto encontrada em cronicasmacaenses.com.
O
«maçon»
— Ele era católico?
—
Ele, não. Ele não era católico. O Camilo Pessanha era «maçon»!
— De lá? Havia cá
Maçonaria?
—
Aqui a actividade da Maçonaria deveria ser diminuta. Mas eu tenho uma fotocópia
do testamento do dr. Danilo Barreiros, que é um grande estudioso de Camilo
Pessanha. E ele tem lá uma fotocópia do ingresso de Camilo Pessanha na
Maçonaria portuguesa.
— Portanto, há
muita coisa que está a ser coligida para uma possível biografia, e estou a
lembrar-me da velha e utilíssima biografia do Pessoa pelo João Gaspar Simões.
Tu achas que é possível hoje em dia fazer um...
— ...mas
o João Gaspar Simões tem um livro sobre o Pessanha, daquela colecção «Vida e
Obra», e que aliás é uma obra de consulta muito boa.
— Mas já está muito
incompleta, não?
—
Eu acho que sim. Faltam, sobretudo, dados em relação à tomada de posse como
conservador, como juiz, etc. Eu agora tenho os dados certos,
porque estou no Tribunal e estou a ver...
— Mas estavam
errados?
—
Alguns estão errados. Datas... mas isso também não é lá muito importante...
— Mas esta parte
jurídica era a mais obscura.
—
Era quase completamente obscura, na medida em que nunca ninguém antes de mim
estudou a sério o espólio jurídico de Camilo Pessanha. Isso é o que eu estou a
fazer agora neste primeiro momento.
— Portanto, será
essa a única parte obscura, que falta conhecer da vida de Camilo Pessanha?
—
Sim, a não ser que apareça para aí algum caderno escondido...
— Porque é que
ele escreveu tão pouco?
—
É verdade! Escreveu pouco, mas tão bonito! Ele burilava tanto, tanto, que de
facto...
— Ele
destruiria?...
—
Há quem diga que ele não ligava muito àquilo que fazia. Há quem diga que ele
escrevia por exemplo, na mesa do café, ou em qualquer sítio onde estivesse.
Escrevia e depois oferecia. Ele fazia e depois não tentava guardar para ele,
era um bocado desordenado! Então oferecia aos amigos exemplares dessa poesia.
Há outros que dizem que ele ia a uma tipografia e rapidamente mandava imprimir
vários exemplares e destribuía. Mas eu, por acaso, não estou muito de acordo
com esta teoria. Porque aquilo que aparece de Camilo Pessanha, aquele caderno
poético que tu também tens, tem muitas emendas. Ele era uma pessoa que tinha a
preocupação de esculpir a sua poesia. E a sua poesia é tão bonita que é quase
impossível mudar-lhe uma palavra, porque ele escolhia exactamente a palavra
precisa.
— Tu achas, que o
Camilo Pessanha seria um grande jurista, um grande advogado?
—
Sem dúvida!
— Um excelente
professor?
—
Sem dúvida!
— ... E que andava aí a pasear e a «curtir Macau»,
a viver sinceramente Macau completamente dependente do ópio...
—
Sim! Não só Macau...
— Bem sei que
também viajou à China.
—
Foi muitas vezes a Cantão e muitas vezes a Hong-Kong.
— ... Portanto, a viajar, a viver, a sentir e a
amar profundamente a China e o Oriente. E que, por acaso, também fazia como
distracção poesias...
—
Não eu acho que não era tão simplista como isso...
— Ou era a imagem contrária? Um grande poeta,
com grande rigor e uma grande selecção na poesia?
— Sim!
— E que tinha um
emprego para ganhar a vida?
—
Sim! Mas em que também era muito bom.
— Qual seria a sua
opção primeira?
—
Isso agora é que não sei. Eu penso que ele tinha um coração tão grande que
podia dividi-lo. Na parte poética, ele foi de facto um grande poeta, mas na
parte profissional, em que ele tinha de trabalhar, foi um grande professsor.
Era um indivíduo que entusiasmava muito os alunos. Mas além de professor ele
foi também um grande juiz e um grande advogado! Eu estou agora a prová-lo.
— Que testemunho
mais além da neta, que ainda é viva?
—
Olha, há testemunhos de pessoas cujos pais conviveram com o Camilo Pessanha.
Por exemplo, o dr. Assunção, que é o presidente da Assembleia Legislativa, cujo
pai era advogado aqui em Macau. O dr. Assunção conta-me coisas que ouviu o
contar sobre Camilo Pessanha. O dr. Silva Fernandes, que é também escritor e
advogado, o pai dele era amigo do Camilo Pessanha e conta-me coisas dele.
— Tais como?...
—
Conta-se que ele nunca chegava a horas ao Tribunal. Era uma pessoa que se
esquecia um bocado das horas, talvez exactamente por causa do vício do ópio.
Escrevia com um fósforo. Ele era conservador do Registo Predial, escrevia
muitas vezes os registos dos prédios e fazia-o com fósforos. Ele tinha muitas
actividades.
— Era um distraído?
—
Talvez tivesse a distracção dos sábios... Embora, eu ache que ele não era tão
distraído como as pessoas pensam.
— Há um testemunho
que diz que ele foi encontrado na Calçada do Monte na Graça, a dizer poemas, a
ver Lisboa, quando esteve lá em 1916... Ele andava por aí a dizer os poemas?
—
Não, não é nada disso! Ele escreveu para um dia 10 de Junho, para uma
comemoração. Escreveu uma coisa lindíssima sobre a gruta de Camões, em que diz
que: «Ás vezes quando vamos aí por Macau, tenho a sensação de que estou em
Portugal, numa rua arborizada de Sintra». Julgo que ele se reporta a Sintra,
mas isso também sucede comigo e já deve ter sucedido contigo. Estás aí numa rua
e o cheiro transporta-nos para Portugal. Pessanha gostou muito de Macau, mas
nunca se esqueceu de Portugal. Ele foi sempre uma alma dividida.
"Fumadores de ópio". In, Felipe Emílio de Paiva. Um Marinheiro em Macau. 1903.
Álbum de Viagem. Edição do Museu Marítimo de Macau, 1997.
Foto encontrada em caderno-do-oriente.blogspot.pt.
O
modernista
— Ele estava muito
interessado em receber jornais e livros? Estava em contacto com movimentos
poéticos, nomeadamente o grande movimento poético do seu tempo, o Orpheu.
—
O Orpheu, Pessoa...
— Em que há o
contacto com o Pessoa, que lhe escreve...
—
E o Pessoa lhe pede para mandar poesias.
— E ele envia!
—
E o Fernando Pessoa diz-lhe sobre aquele soneto «Quem poluiu, quem rasgou os
meus lençóis de linho?». Tu conheces. Tão lindo, não é? Tão lindo... O Pessoa
diz: «É dos maiores ou melhores poemas que eu tenho lido», qualquer coisa neste
estilo...
— O Camilo Pessanha
tem uma enorme influência do Mário de Sá-Carneiro e do Fernando Pessoa não é?
Mas, o Sá Carneiro diz que foi uma enorme emoção para ele, a leitura do Camilo
Pessanha. Seria um snobismo da parte dos do Orpheu?
—
Não! É porque a poesia dele é, de facto, muito bonita.
— Como é que tu
achas que seria se tivesse acontecido na bibliografia do Pessoa ou na do Mário
de Sá-Carneiro terem vindo viver para Macau? Como é que achas que seria o
itinerário deles? Seria parecido com o do Pessanha?
—
Talvez não! Penso que não. Porque o Fernando Pessoa gostava muito de beber...
Enfim, no fundo também era uma fuga... A fuga do Camilo Pessanha era o ópio.
— Achas, portanto,
que o Camilo Pessanha tem exactamente o mesmo tipo de itinerário de fugir
através do ópio? Em Lisboa não havia ópio com facilidade...
—
Eram os tais artifícios! Eram realidades que ele criava, diferentes daquela que
ele tinha de pisar todos os dias. Era, de facto, uma fuga!
— Era um itinerário
parecido com o de Sá-Carneiro, com o de Pessoa, dessa geração...
—
Dessa geração... Mas eles era diferentes. Camilo Pessanha era uma pessoa muito
marcada pela infância. Estou convencida de que o facto de a mãe nunca ter casado
com o pai foi uma dor que ele manteve até à morte, porque ele tinha um amor
extremoso pela mãe. Era aquela clássica ligação que havia em Portugal na época:
o estudante de Coimbra que faz um filho a uma criada. Por acaso, o pai dele
teve nível, porque manteve sempre a senhora com ele. Deu-lhe mais filhos,
porque o Camilo Pessanha foi o mais velho. Ele teve mais irmãos e irmãs, mas a
senhora sempre acompanhou o pai. O pai que foi magistrado, juiz do Supremo Tribunal
de Lisboa. Andaram por Lamego, Açores e depois esteve em Lisboa, embora a
senhora depois aqui tivesse morrido em 1900, penso. Ele teve um grande desgosto
aqui. Camilo Pessanha sempre teve essa mágoa, de nunca ter havido legitimação
da ligação do pai com a mãe.
— O Camilo Pessanha
foi um bom pai?
—
Não, ele não tinha grande amor ao filho! Até chegou a expulsá-lo de casa.
— Como se chama o
filho?
—
João Manuel de Almeida Pessanha. Era filho de Camilo Pessanha e da concubina. O
filho era intelectualmente pouco esperto! Um bocado medíocre. Estás mesmo a ver...
O Camilo Pessanha com aquela cultura, aquela sensibilidade, ter um filho que não
era de maneira nenhuma o retrato dele.
— O que fazia o
filho?
—
Não fazia nada! Tenho um documento em que ele pede, solicita para o filho fazer
o exame da 3ª classe. Era assim um bocado «para o vadio»... Depois o filho teve
uma ligação com uma senhora portuguesa de Macau, de quem tem esta filha, a D.
Maria Rosa. Não casa com essa senhora porque, segundo diz a neta, o Camilo
Pessanha pediu à nora para não casar com o filho, porque «ele não prestava».
Isto é o que diz a neta. Ele veio a casar depois com uma chinesa, de quem teve
um filho, que tambérm ainda está vivo. Está num asilo e é opíomano também.
— E ele tem a noção
de que é neto do Camilo Pessanha?
—
Sim, tem! Mas eu nunca falei com ele, ainda nunca o encontrei.
— Tem havido
entrevistas com essa gente, para dar algum testemunho?
—
Sim, a D. Rosa vai sempre assistir às minhas conferências. Eu convido-a sempre.
— Mas entrevistas
em vídeo, gravações?...
—
Não, não! É uma pena, e por acaso era bem giro. O filho de Camilo Pessanha
também morreu muito novo, com tuberculose! Mas também foi um opiómano, como
pai, e no fundo morreu das sequelas do ópio, tal como o pai.
— Há dois versos
muito bonitos «O Oriente do Oriente», do «Opiário» do Álvaro de Campos. Achas
que o Camilo Pessanha encontrou aqui o seu «Oriente do Oriente»?
—
Olha, é uma boa pergunta. Nunca me tinha lembrado disso. Ele encontrou aqui
talvez um «porto de abrigo».
— Outra pergunta:
«Símbolos, tudo são símbolos»... Macau foi «um símbolo» para o Camilo Pessanha?
—
Foi, nitidamente!
— De quê?
—
De refúgio! Talvez de calma, de tranquilidade, de devaneio um bocado provocado
pelos «fumos quietos» do ópio. A que ele chama o «fumo quieto». Mas também um
local onde ele sofreu. Ele chamava a Macau «o chão antipático do exílio», porque
apesar de ele ter amado profundamente Macau, ele amou muito Portugal. Ele foi
sempre uma alma dividida entre Portugal e as suas origens e «a sua eterna errância».
No fundo, é um bocado o destino dos Portugueses pelo mundo, não é?
— Uma última
pergunta: Macau é símbolo de quê, neste momento?
—
Macau é o último reduto dos Portugueses pelo mundo. É o símbolo da nossa
permanência e da nossa Cultura no mundo. Será um local onde (se tudo for bem encaminhado
e se a política cultural for acertada) os valores culturais ocidentais e
portugueses poderão permanecer atentos e poderão diversificar-se por todo o
Oriente, sobretudo nos locais que historicamente estão ligados a Portugal.
Texto e títulos em
Jornal de Letras 7.8.90
Camilo Pessanha (1867-1926) em 1916.
Foto encontrada em sitiodascitacoes.com